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A última série de Valério

Atualizado: 21 de nov. de 2021

Texto: Rafael Frederico Teixeira


Imagem 1: "Autorretrato da quarentena - D'après Courbet" Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/



Comecei este texto no final de 2020, quando estava envolvido com a edição do livro de meu pai sobre a série Da minha janela – Aquarelas da quarentena. Li a metade do texto para o Claudio Valério, que gostou e me incentivou a terminar. Contudo empaquei, como se o texto e eu mesmo esperássemos um desfecho para o estado em que ele se encontrava após uma infecção pela infame Covid-19. Ao fim do tratamento, verificou-se a evolução galopante de um carcinoma, que, em poucas semanas, de um pequeno nódulo já presente antes do vírus, tomou todo o seu pulmão. Por alguns meses, meus irmãos e eu, ao lado de nossa mãe, nos dedicamos aos cuidados de Claudio Valério, dispensando o auxílio de profissionais para evitar mais riscos. Para mim, foi uma especial oportunidade de apoiá-lo e retribuir-lhe parte da minha imensa dívida. Um período de carinho, cuidados e companheirismo; uma ponte de reconciliação entre nossas diferenças, pois ele e eu frequentemente batíamos de frente, o que nunca nos separou. Pelo contrário, nossas discussões acabaram por nos unir de forma pungente, e hoje acho que eu deveria mesmo estar errado na maioria das vezes, pois ele era muito mais sábio. Na tarefa dos cuidados, não voltei ao texto, e ontem veio o desfecho da situação, quando Claudio Valerio irremediavelmente nos deixou. Desde sua partida, debrucei-me doloridamente sobre o esforço de cumprir a promessa e terminar a escrita, que se desvirou também em agradecimento, despedida, lembrança. Sou seu filho de sangue, mas, hoje, muitos são seus órfãos.


Sorte minha surgir à vida por vias do amor de Claudio Valério e Thania Regina. Tem sido uma aventura crescer e viver na companhia e mentoria de um casal tão ilustre e ilustrado. Eu me dediquei à música, e, diferentemente de meus irmãos, nunca trabalhei com Claudio no ateliê de restauração. Mas a música também lhe era cara, assim como as artes plásticas me são íntimas. Nós costumávamos conversar longamente sobre arte, conservação, restauração, música, pintura, escultura e mesmo teatro, cinema ou literatura. Nosso ambiente – casa e ateliê –, frequentado por artistas e intelectuais, muito privilegiou meu aprendizado.


Ainda me lembro de seu sorriso, de sua felicidade, quando descobriu que eu podia, ainda jovem e sem esforço, distinguir obras falsas das verdadeiras, de artistas, épocas e estilos variados, como Castagneto, Parreiras, Panceti ou DiCavalcanti. Era coisa natural, afinal, meus irmãos e eu fomos criados com acesso livre ao ateliê. Víamos obras chegando e saindo dia após dia. Desde tenra idade foi-nos passado, frente aos olhos, toda sorte e o melhor da pintura brasileira, como um museu que renova seu acervo com extrema frequência, ao longo dos meses e dos anos. Então isso virou um jogo. Ele me chamava e perguntava:


O que achou desse Castagneto, Rafael? Chegou hoje.


E eu respondia que era ótimo, como todo Castagneto é; ou, em outros casos, utilizava como resposta uma outra indagação:


De que Castagneto está falando? Eu não vejo nenhum aqui.


Então ele batia na mesa e apontava para mim, bradava um “ha!”, afirmando em seguida que meus olhos andavam bons.


De tudo, porém, o que sempre e mais me fascinou era vê-lo pintar. O despontar das ideias, as discussões, os preparativos, a procura por modelos e locações, a produção de fotografias; depois as telas sendo encomendadas, chegando, surgindo a preparação de fundo, o grisaille, a marcação a carvão e as imagens daí sendo construídas; o artista aplicando as cores, criando, se arrependendo, destruindo, transformando ou refazendo. Foi isso que sempre me encantou: ver a tela vazia virando um reflexo de seu mundo interior, de sua maneira de ver, de sua personalidade ao refletir, desmontar e montar o real e o onírico, fosse em uma pequena tábua de caixa de charutos, tal e qual as usadas por Castagneto, ou quando estendia um painel gigante que ocupava toda a parede da sala de jantar, e convidava os filhos ainda pequenos a dar algumas pinceladas nos cantos da tela.


Arrisco, portanto, alguns comentários, fruto de íntimo contato e intensa convivência com o artista. Tendo acompanhado de perto e com interesse o desenvolvimento de sua linguagem através de diversas fases, pude distinguir nessa série da quarentena um momento de introspecção, como se o pintor, trancafiado em casa por força da pandemia, olhasse no espelho e fizesse uma recapitulação, recontando a si todos os seus ciclos, todos os seus impulsos, todas as suas visões.


Nesta última série de Valério, encontramos cenas e personagens que povoaram suas ideias e motivações. Estão ali velhos amigos, conhecidos imagéticos de todos os que frequentavam seu ateliê e festejavam seu talento: os nus, modelos vivos em forma de estudos, com recortes e detalhes em ângulos distintos; as paisagens do sítio; as vistas das janelas e do terraço de casa; as homenagens a outros artistas, como as quase abstratas e ilustrativas "picassianas" – que a mim sempre lembrou Braque –, as naturezas mortas inspiradas em Cézanne; os lutadores de boxe, enfim: tudo o que Claudio fez e gostou de criar. Até mesmo voltam à vida o lixo, o jornal amassado e as caixas de papelão jogadas nos cantos, que pintara no início da carreira, praticamente um garoto, contendo, novamente, uma inscrição de caráter político que quase passa desapercebida, mas está lá, redesenhando e reafirmando seu ativismo, outra característica muito presente ao longo de sua carreira.



Imagem 2: "Madrugada na TV" - Aquarela sobre papel Arches - 36 X 51 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


As vistas da janela ou os pedaços do quintal, no subgrupo de aquarelas intituladas "Da minha janela", sugerem depoimentos sobre a clausura, o sôfrego isolamento imposto pela pandemia. Claudio, que sempre fora um "bicho social", de interagir, de grandes amizades, largos sorrisos, um exímio contador de histórias, encontra-se ali um tanto aturdido por conta dos muros impostos. Após as sessões de desenho, quando artistas se juntavam em seu ateliê para exercitar o modelo vivo, Claudio não abria mão de se sentar num restaurante ou num bar, geralmente no calçadão, à beira da Praia de São Francisco (que aparece retratada nas palmeiras de “Minha Praia, São Francisco”), e papear longamente sobre a vida. Essas olhadas furtivas através das janelas clamam pela liberdade dos encontros, por redescobrir as ruas. Há uma saudade melancólica, uma necessidade de fluir. Apesar da muita cor e de uma brilhante luz primorosamente captada, os cantos vazios do quintal marcam também esses impiedosos limites, com as plantas ornamentais, como ele, encerradas, em pequenos vasos, cativas, amarradas, carentes de amplidão.



Imagem 3: “Galinheiro - Visconde de Mauá” - Aquarela sobre papel Hahnemühle 36 x 48 cm Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


As paisagens do sítio onde passava feriados em Visconde de Mauá, por outro lado, são como uma frouxa e funda respiração, uma pausa breve no isolamento, um momento bucólico junto à grande família. Vislumbres da propriedade são uma constante pontuando a produção de Valério – como é chamado pela esposa e entre os amigos mais íntimos –, principalmente na técnica da aquarela. Aqui vemos o tema recorrente do galinheiro, que funciona como a ponte de Langlois para Van Gogh, pintada muitas vezes em diferentes épocas da vida, de distintos posicionamentos, luzes e horas do dia. Todas as vezes que estive no sítio, com ou sem a companhia do Claudio, ao olhar o galinheiro o entendi: parece-me pictórico por si, pede para ser pintado, como se as velhas tábuas que o compõem já fossem pinceladas na tela ou no papel.




Em meio às montanhas da Serra da Mantiqueira, o artista sai carregando a maleta de tintas e o bloco, a vaguear por trilhas; adentra a vegetação, pisa o mato, afasta os arbustos e enfrenta até uns espinhais, cavando uma perspectiva que valorize a riqueza da luz viva, do contato direto com a natureza, das cores submetidas aos rápidos movimentos das nuvens, dos pássaros que cantam e se agitam voando através da janela de seu enquadramento, dos ventos irriquietos bailando as copas das árvores e dos cristalinos riachos que ao longínquo percorrem – tudo o que contribui para a clareza, a transparência e a dificuldade da aquarela, que pouco admite erros, e exige ao máximo em velocidade, destreza, atenção e precisão. Nessas paisagens, pérolas de sua produção, ele se encontra com os espectros de Parreiras, Castagneto, todo o Grupo Grimm; ou os que vieram depois e continuaram com a tradição da pintura ao ar livre, como Garcia Bento, Pancetti, seu caro amigo Aluizio Valle.


As visitas ao ateliê falam de sua vida como conservador, de seu labor na restauração. Quatro aquarelas de interior, com telas de ilustres pintores contidas pelo papel, em cortes oblíquos, que impressionam pela profundidade, realismo, contraste, perspectiva e dimensionalidade da cena. Claudio imagina receber os autores das pinturas trazidas aos seus cuidados e de sua equipe, como se sonhasse vivos companheiros e ídolos, fantasmas aluídos de ícones que já se foram. Relembra Volpi, que frequentava a casa de seu pai, o pintor Oswaldo Teixeira, e com quem o próprio tivera contato na juventude, ouvindo e repassando algumas de suas histórias. Temos também a visita de seu "amigo Iberê Camargo", pintor expressionista e abstrato de grande renome. Essa concorre com o tratamento formal de uma outra visita (com quem, por impossibilidade temporal, nunca teve contato direto), na aquarela intitulada "Visita do Sr. Giovanni Battista Castagneto ao ateliê", a qual descortina a irrestrita reverência e admiração por esse mestre da marinha brasileira.



Imagem 5: “Minha biblioteca - Homenagem a Vieira da Silva” - Aquarela sobre papel Arches 36 x 51 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


Da cruza entre o pintor e o restaurador resulta um estilo muito pessoal, no limiar do realismo e do expressionismo, revelado na atenção especial à fatura e à materialidade das tintas e dos suportes seu interesse físico-químico pela arte. Dedicou o grosso de sua obra ao figurativo, fazendo breves incursões na Abstração e no Concreto, por vezes mesmo no Conceitual, além de demonstrar forte influência da Pop Art em algumas de suas mostras. Como crítico de arte dialogou com múltiplas linguagens, e teve entre seus amigos e interlocutores artistas de vertentes muito diversas, como Abraham Palatnik e Flavio Shiró. No ateliê em Niterói, as portas estiveram constantemente abertas, e todos eram bem vindos para discutir arte. Essa atividade intelectual férvida está representada na aquarela Minha biblioteca – Homenagem a Vieira da Silva, um fragmento de seu dinamismo e suas leituras, proposto num paralelo entre a disposição dos livros e as telas abstratas da artista portuguesa. Claudio costumava dizer que uma biblioteca muito arrumada era uma biblioteca de quem não lê.


Valério homenageou pintores de épocas variadas e com visões distintas, conforme interesses, humores e estudos do momento de sua carreira. Nessa série, tal prática aparece nas aquarelas em que presta reverência a Guignard e a Picasso, como no passado fez nas exposições em homenagem a Picasso e Van Gogh, nas têmperas a Egon Schielle, ou na despretensiosa apropriação de um resto de obra, transformado em uma paródia de Bandeira, que pousa na parede da casa do artista. Como um camaleão, incorporava não só a fatura, mas a afinidade com o entendimento sobre arte, de mestres consagrados. Nem seu trabalho nem sua oratória manifestavam uma preocupação em fixar e repetir um estilo. Pelo contrário, seu espírito jovem e curioso buscava novidades ou concepções originais sobre o antigo e o que a História da Arte deixou despercebido no passar. E mesmo assim seu estilo e suas características se cristalizaram firmes naturalmente, num caminho mais difícil do que a mera repetição. Escolheu uma direção, uma posição de certa forma solitária, como fora a de seu pai, Oswaldo Teixeira, à margem dos modismos.



Imagem 6: “Gestos” - Aquarela sobre papel Hahnemüle 36 x 48 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


As mãos que materializaram as ideias protagonizam alguns trabalhos. Na aquarela Gestos, a mão, que dança, parece marcar no suporte do tempo a leveza e a beleza de seus movimentos últimos. Transparece nessa tela a vontade de perdurar, vencer a efemeridade e projetar a beleza da criação no futuro distante e inalcançável. Noto uma intrínseca ligação com a musicalidade do artista, e os movimentos, como os de um maestro, lembram-me seu belo toque ao violão, sua paixão vivaz pela música. É como se procurasse, com certo desespero, no ar, significado para o que passou e respostas sobre o complexo e conturbado período pandêmico que hoje vivemos, arriscando-se ao futuro, ao incerto, ao imprevisível. Esse balé de empunhaduras clama pela harmonia entre força e leveza, espada e traço, potência e encanto, imagens que bem o definem.



Imagem 7: “No ateliê, lavar as mãos” - Aquarela sobre papel Hahnemühle 36 x 48 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


As mãos também aparecem sendo lavadas, em duas de suas aquarelas. No ateliê, lavar as mãos registra a necessidade cotidiana dos cuidados com o manuseio de componentes tóxicos da prática da restauração; em contrapartida, Lavar as mãos assinala a novidade dos protocolos para evitar a contaminação do vírus, tão difundidos e pouco seguidos no nosso país. Procedimentos automáticos, excessivos porém necessários, em claro contraponto às mãos que, livres no ar, parecem mover-se no papel. Feito à mão conta sobre o trabalho do artista que o espectador não vê: separar as tintas, selecionar os pincéis, limpar a palheta e os utensílios, encher a tigela de água. Faz-me lembrar o cheiro do ateliê, com suas tintas, solventes e aglutinantes, a cozinha que prepara e antecede a concepção da forma.


Os nus revelam o desprendimento frente à ameaça da doença e da morte. Um modelo principal divide o papel com retalhos múltiplos na forma de estudos, destacando seu abdômen, suas pernas, seu pênis ou os pés de sua mulher. O pintor e a companheira de toda a vida se despem das preocupações cotidianas, das vergonhas e vaidades, e entregam-se ao essencial: o sol, os banhos e o repouso, provendo corpos e almas da imunidade essencial contra o ardiloso vírus.



Imagem 8: “Visita de Volpi ao Ateliê” - Aquarela sobre papel Hahnemühle Leonardo - 36 x 48 cm. “Memento Mori” - Aquarela sobre papel Hahnemühle Leonardo - 36 x 48 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


Sobre a morte também nos fala Valério quando surgem em duas aquarelas dois crânios. Em Lição de Anatomia, uma caveira de boi pintada no sítio, a aridez e a dureza se fazem presentes, numa composição em diagonal e pretos bem marcados que contrastam com a fineza do traço, a delicadeza de pequenas rachaduras e a complexidade do relevo nos amarelos e cinzas. Valério era um eterno estudioso da anatomia, carregava a humildade de um aprendiz, a disciplina de um escolástico, a força motriz de um incansável praticante. Essa peça da ossada nos faz refletir sobre a crueza da vida e a secura da morte.


Eu mesmo a trouxe das proximidades do sítio há poucos anos e a pus em cima da lareira, do lado de fora da casa, na varanda, sem suspeitar que um dia habitaria um quadro de meu pai. Num contexto mais reflexivo, teatral, na shakespeariana Memento Mori, o pintor retrata-se encarando um crânio humano, com uma expressão mista de susto e indagação. É evidente a referência ao óleo sobre tela Sic Transit Gloria Mundi, de sua mostra Cartas a Vincent, também batizada em latim. Entre as diversas traduções dessa expressão, o autor preferia A Glória no Mundo é Transitória, frase que os escravos romanos gritavam, lembrando aos generais que voltavam em desfile às cidades, como heróis de guerra, sobre a transitoriedade da glória e da vida. Mas o fato é que o artista nunca foi dado a se perder em extenso sob tais indagações. Nunca o ouvi sofismar sobre o metafísico ou sobre o post mortem. Não dedicava longos diálogos ou mesmo pensamentos, me parece, a questões existenciais, místicas ou religiosas. Sempre aceitou a morte como o mistério que é, numa receita pessoal de agnóstico com ateu. Gostava, porém, de explorar em sua pintura o tema da morte, da finitude, do passageiro. Dizia que o que importa é o que se deixa, e isso era o mote e o motor de seu trabalho. Sua energia lógica e dialética, seu afiado intelecto, estava geralmente voltada à arte, à política, à ciência, ao trabalho. Foi um homem prático. Um homem de ideias criativas que influenciou o seu meio, a política e a sociedade à sua volta. Um incentivador, uma espécie de padrinho de centenas de artistas plásticos, músicos, restauradores, arquitetos e mesmo de outros profissionais. Em sua visão de mundo, a vida era fazer.



Imagem 9: “Fisiologia das Paixões” - Aquarela sobre papel Arches- 36 x 51 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


Imagem 10: “ Autorretrato com camisa de Picasso” - Aquarela sobre papel Arches 51x 36. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


Julgo que as aquarelas mais emblemáticas de toda essa série são o Autorretrato na quarentena – D’après Courbet, a Fisiologia das paixões, Así pasan los dias, así pasan las horas, o Autorretrato na pandemia e oAutorretrato com camisa de Picasso. Elas formam um subgrupo que explora as emoções incontidas, as dificuldades do domicílio e da desunião, a solidão do retiro. Na primeira, o pintor faz uma referência à tela "O Desesperado", de Gustave Courbet, e, ao adicionar uma máscara ao seu próprio rosto, encobre parcialmente sua angústia, num mimetismo adaptado ao nosso raro e difícil tempo. Fisiologia das paixões é inspirada nos manuais acadêmicos de desenho e também nas aulas dos seus ilustres professores Abelardo Zaluar e Lydio Bandeira de Mello durante o curso de bacharelado em pintura na Escola Nacional de Belas Artes da UFRJ, de onde, mais tarde, se tornaria professor. Aparecem sete expressões representadas pelo próprio artista, seis das quais de natureza negativa: cinismo, raiva, pânico, tristeza, nojo e dor. Essas são pintadas em sanguínea, puxando para tons terrosos, e aparentam veracidade numa boa atuação do modelo, que claramente se esforça por representar esses impulsos de forma convincente. A sétima, porém, uma expressão de natureza positiva – a alegria – aparenta falsa, forçada, extremamente incômoda e mesmo deslocada, a despeito da fatura diferencial em cor. O artista extravasa um pedido de socorro, como se não pudesse escapar do ciclo de emoções negativas, a não ser pelo fingimento. Así pasan los dias, así pasan las horas complementa esse estudo de expressões – ou paixões, como dizem os artistas. Há seis rostos, todos em cores, representando as seis emoções negativas. A paixão fingida fica de fora, o pintor desiste da alegria. Todas as outras estão agora cobertas pelas máscaras e dispensam o tratamento especial em sanguínea. Não podem transparecer nem pela cor, ou existir para além das máscaras.



Imagem 11: “Autorretrato na pandemia” - Aquarela sobre papel Hahnemühle - 48 x 36 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


No Autorretrato na pandemia, enraivecido e extenuado, o pintor morde seu pincel, consumido pela reclusão e com as feições deformadas pelo exagero da expressão. Já em Autorretrato com camisa de Picasso, o rosto do artista é quase irreconhecível. Aqui, todavia, o efeito é por conta do estilo expressionista, e não propriamente do semblante do retratado. O pincel destaca a magreza, uma mandíbula mais fina, olhos salientes; apreensão, fraqueza, doença ou mesmo um semblante senil. Claudio dizia que o bom retrato não precisa ser plasticamente fiel, mas deve traduzir um estado de alma, uma condição física ou uma preocupação interna.



Imagem 12: “Lixo” - Aquarela sobre papel Hahnemühle 36 x 48 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


O lixo é um antitema: dejetos, matéria abandonada, objetos sem valia. São as formas que ninguém nota, invisíveis, desdenhadas. Valério recicla beleza em caixas de papelão, jornais e embalagens descartadas. Por trás dessas formas, podemos descobrir uma incompleta inscrição, como se todo o lixo à sua frente a impedisse, a obscurecesse, a calasse. O grito reprimido de "FOR BOL" faz menção ao presidente da pandemia, repudia um governo que incentivou a disseminação da doença e que foi omisso no aparelhamento para os cuidados. Lixo.



Imagem 13: “Vou apertar, mas não vou acender agora” - Aquarela sobre papel Hanhnemühle 48 x 36 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


Em Vou apertar, mas não vou acender agora, o pintor expõe sua posição sobre a legalização da cannabis sativa. Embora não a usasse, ele se colocava a favor da liberação do uso para qualquer fim, assunto calorosamente tão discutido nos últimos anos. O título cita o refrão da canção Malandragem dá um tempo, de Bezerra da Silva, notório usuário. Neste autorretrato multiplicado, Claudio aparece quatro vezes fumando os seus cigarros prediletos, industrializados, de tabaco. Porém, maneja-os com os trejeitos dos maconheiros. Três das quatro aparições estão em cores, e uma, por trás, aparece em sanguínea, como um fantasma. Quando adoeceu, muitos me perguntaram como poderia ter sido se tivesse parado de fumar antes, se tivesse se cuidado mais... Eu mesmo me perguntei tais coisas, e a resposta a que cheguei é a de que a conjunção subordinativa condicional "se" não se aplica bem ao meu pai. Não combina com suas realizações, com suas desenfreadas paixões, com suas escolhas conscientes. Claudio Valério foi o que foi, fez o que fez, assumiu a responsabilidade, abraçou seu destino. Gostava e precisava de seus cigarros. Escolheu e não demonstrou arrependimento nem remorso em seu final. "Se" funciona muito bem para lembrar dos que pouco fizeram. Claudio Valério foi grande, de forte envergadura, e não precisa do "se". Fumava quatro cigarros no espaço pequeno de uma folha de papel.



Imagem 14: “Peixes” - Aquarela sobre papel Arches - 36 x 51 cm. Fonte: https://www.instagram.com/claudiovalerioteixeira/


Nas naturezas-mortas, a materialidade das frutas e dos vasos de cerâmica que tanto apreciava parece ganhar tridimensionalidade em seu realismo. Neste caso, diferentemente das demais peças mais despojadas, o acabamento é mais detalhado. Ao longo da vida pintou diversas naturezas mortas nesse mesmo estilo, inspirado em Cézanne, tanto em óleo como em acrílica ou aquarela. Olho para os Peixes, imóveis num prato, com olhos esbugalhados, prontos para servir de alimento, e penso que são o retrato de nossa finitude, como toda vida acaba: estática, bidimensional, tal qual uma obra emoldurada, impressa em uma tela ou papel, onde estão recônditas lições de forma, de cor, de composição, de anatomia, de estética e até mesmo da ética e do esforço. Lições que podemos contemplar.


Esse homem, sempre atento e preocupado com os filhos, os parentes, os amigos; de personalidade forte, muitas vezes difícil; que carregou uma paixão invariavelmente inquieta, persistente e obsessiva pelo seu trabalho e por sua arte – como carrega todo magistral artista –, continua a nos marcar, a nos cutucar, nos espetar, nos convidar ao pensamento, nos machucar ou nos acariciar com pinceladas sagazes, nutridas de um frenético e abrasado amor pela vida e pela pura expressão da forma, da textura e da cor. Nos enriquece com uma obra única, calcada no conhecimento, na prática, na tradição e na originalidade.


Aquarela, na pandemia, é esperança.


Aquarelas da quarentena: Claudio Valério Teixeira. Produção e edição: Fernanda Teixeira

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